"O Esquema Fenício": Wes Anderson volta à família

Alguns dos melhores filmes de Wes Anderson têm a ver com a família e os seus conflitos, dores e laços, e muito particularmente com as relações entre um pai e os seus filhos. Assim é em Gostam Todos da Mesma (1998), Os Tenenbaums – Uma Comédia Genial (2001), Um Peixe Fora de Água (2004) ou The Darjeeling Limited (2007). Essa relação que está no centro do seu novo filme, O Esquema Fenício, e resgata-o de ser apenas mais uma reiteração dos dois anteriores, Crónicas de França e Asteroid City. Ou seja, um atarefado e árido diorama animado, formalmente hipertrofiado mas de miolo minúsculo, desprovido de vibração emocional e vazio de estímulo intelectual, embalsamado na estética lúdico-simétrica e no perfecionismo microscópico do realizador.
[Veja o “trailer” de “O Esquema Fenício”:]
Passado nos anos 50 e indo “picar”, como é habitual em Anderson, a vários géneros, caso do filme de espionagem internacional, O Esquema Fenício tem Benicio Del Toro no papel de Zsa-zsa Korda (Wes Anderson concebeu a personagem especificamente para ele), um implacável magnata e homem de negócios de extração levantina, apaixonado por arte clássica, cuja vida é marcada por factos insólitos e acontecimentos absurdos. Além de já ter sobrevivido a seis acidentes de aviação, todos eles causados por atentados, já que é universalmente execrado e vigiado de perto pelas grandes potências, Zsa-zsa tem 10 filhos (dos quais vive separado, porque não tem paciência para crianças).
Mas Zsa-zsa acaba de tirar a filha favorita, Leisl (Mia Threapleton, filha de Kate Winslet) do convento onde é noviça e ia professar, a qual não via desde que para lá tinha entrado após a morte da mãe, para tentar reconciliar-se com ela, fazê-la sua única herdeira e envolvê-la nas suas atividades. O que a devota e severa Liesl faz com bastante relutância, enquanto critica o pai pelos seus métodos pouco ortodoxos e nada compassivos de fazer negócios. Um destes é o complexo “Esquema Fenício” do título, para o qual resultar e render, Zsa-zsa precisa de ter a maioria das participações, partilhadas por sócios pouco recomendáveis e por familiares que ou desconfiam dele, ou o odeiam tanto que o querem matar.
[Veja uma entrevista com os atores do filme:]
A relação entre pai e filha não é, em O Esquema Fenício, apenas decoração narrativa, uma peça de um novo grande, intrincado e idiossincrático kit visual animado de Wes Anderson, que investe emoção, afeto e humor nela, fazendo-a evoluir e às duas personagens, dando assim ao filme um relevo e uma alma que estavam ausentes do cinema do realizador há bastante tempo (com a relativa exceção de A Incrível História de Henry Sugar, que Anderson assinou para a Netflix em 2024 sobre quatro contos de Roald Dahl). Esta atenção à história de Zsa Zsa e Liesl faz também com que a fita seja mais linear e descomplicada, sem as camadas temporais e a jiga-joga cronológica de outras anteriores.
[Veja aspetos da rodagem:]
Benicio Del Toro, sobre o qual, e a respetiva personagem, toda a estrutura do filme assenta, é particularmente bom, conseguindo transmitir as graduais alterações interiores por que Zsa-zsa passa sob a influência de Liesl, sem por isso abdicar da impassibilidade átona que Wes Anderson pede aos seus atores. Baseado no sogro libanês deste, e em figuras carismáticas do mundo dos negócios como Giovanni Agnelli, Onassis ou Calouste Gulbenkian (a certa altura, chamam-lhe mesmo “O senhor cinco por cento”), Zsa-zsa é interpretado por Del Toro com gosto, substância e um humor negro que o tornam em algo mais do que um dos bonecos excêntricos e unidimensionais de Anderson. E no final, a sua evolução interior é premiada.
[Veja uma sequência do filme:]
Em tudo o resto, O Esquema Fenício é o que já aprendemos a esperar de Wes Anderson. O elenco cheio de caras habituais (com algumas novas pelo meio) em papéis de importância, presença na tela e participação verbal variável, às muitas referências e inspirações cinéfilas, de Buñuel a Tati, Fellini e ao Francesco Rosi de O Caso Mattei, a paixão pelo requinte artesanal e pelas miniaturas, associada a um discreto uso dos efeitos digitais, o decorativismo maníaco do detalhe (até os quadros de mestres vistos no filme são os originais), a simetria cinematográfica irrepreensível, a arrumação milimétrica dentro de cada plano, os pastiches aplicados e a paródia amável a uma época, ao seu espírito, estética e principais protagonistas, tudo empapado em cores pastéis.
Quem anda desiludido com Wes Anderson desde os tempos de Grand Budapest Hotel, e arrebitou um pouco com A Incrível História de Henry Sugar (mas cujos méritos são tanto dos contos de Roald Dahl como do realizador), poderá encarar O Esquema Fenício como um passo no caminho da reconciliação.
observador